domingo, 1 de março de 2009

O assédio moral

Alex Ferraz

Quando eu era menino, tinha devaneios com o ano 2000, com o século XXI. Acreditava, na minha doce inocência, que o ser humano evoluiria lado a lado com as já então evidentes transformações científicas e tecnológicas. Homem na Lua, computador etc., tudo isso, parecia aos meus olhos de criança, caminharia lado a lado com uma fabulosa evolução humana no trato social, mesmo a despeito de naquele momento vivermos uma bestial ditadura militar, contra a qual eu já lutava ainda mal entrado na adolescência.
Como diria um amigo meu: ledo, ledíssimo engano! Não vou aqui - e nem teria espaço, sob pena de maçar os leitores - argumentar com tratados sociais ou filosóficos. Irei à cena comum: em uma loja de venda de celulares, sediada em sofisticado shopping de Salvador, o ambiente é um espetáculo de uma tecnologia que avança vertiginosamente a cada dia. Piscam leds, aparelhos com design futurista (ou este termo já é retrógado?) enchem as vitrines e os olhos de ávidos consumidores.
Mas por trás de tanto avanço, manuseando para venda um desses aparelhos que só faltam falar sozinhos, estão funcionários tratados a pão e água pelos seus superiores. Aliás, antes fosse a pão e água.Muitas vezes, não há pão, sequer água. São violentados por um assédio moral medieval, do tempo em que o amo levava a tiracolo seu escravo e o chicoteava em público. São explorados no horário de trabalho, aviltados por salários que destoam completamente das imensas fortunas que as empresas desse ramo faturam, e ainda por cima têm que ouvir de gerentes: "Vocês aqui são apenas números."
Mas não é só na loja de celular, cujo cenário adotei por mostrar claramente a estúpida diferença entre os avanços tecnológicos e o monumental atraso social deste país. Lojas de grifes famosas são outro exemplo. Gerentes que sorriem servilmente para os branquinhos filhinhos de papai que ali vão deixar uma boa grana, até que tratam bem os funcionários na frente do cliente. Mas quando este dá as costas, o inferno retorna: os empregados são proibidos de sair até para mijar. Nos períodos de grandes vendas (Natal, por exemplo), são exigidos à exaustão, principalmente se fizerem parte do famigerado contingente do "emprego temporário", sobre o qual a imprensa algumas vezes tece loas patéticas.
As ditas autoridades da área trabalhista nada fazem. Uma fiscalização pífia é realizada quando o assunto consegue chegar à mídia - antes de ser censurado - e pronto. Naquele momento, finge-se tudo. O gerente ameaça o empregado, que não quer, não pode perder o emprego, e todos atuam num teatro mambembe, mas que "convence" o fiscal, que, por sua vez, já foi ali sabendo da encenação, até por conta da sua experiência. O fiscal é mais um que sabe que nada vai mudar.
E quando pensam que pelo menos com os colegas podem se dar bem, esses escravos do século XXI topam com a faceta mais nojenta do caráter humano: a traição, seguida de sua irmão gêmea, a covardia. Quem se queixa é visto como um"problema" (assim como os que se destacam na venda também sofrem tremenda pressão dos colegas, que os humilham na frente dos clientes). Ah, agora entendi: é desse contingente mau caráter também entre os empregados que, certamente, surgem os futuros gerentes, mantendo a tradição do trato animalesco.
Para glória do dono do comércio, provavelmente bebericando antecipadamente o champanhe de fim de ano em algum país civilizado da Europa, onde o empregado é tratado como gente (existe?).

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